CAPÍTULO 2 – Perturbação

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A tempestade recobra o seu vigor e atinge o apogeu na terceira hora da madrugada. Teresina é mais uma vez fustigada por raios e ventos implacáveis.

Protegido do dilúvio que assola a parte mais baixa da cidade, em um típico bairro médio-burguês da zona leste teresinense, dorme profundamente um garoto. Mestiço, franzino e míope, repousa sereno em sua cama dentro de um quarto de 15 metros quadrados. Nas paredes, painéis com fotos retratando diferentes fases da sua vida. Aniversários em família; viagens à casa de veraneio; prêmios recebidos na escola. Pelas fotografias, nada de grandioso ou de entusiasmante havia marcado a história daquele jovem de uma cidade desconhecida no mundo. A julgar pela decoração modesta e previsível do cômodo onde dormia, pode se supor que a vida daquele menino raquítico é, até a esta altura, um tanto monótona.

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O condicionador de ar está ligado na máxima potência. O barulho do aparelho abafa o rugido dos trovões, mas não impede que dentro da mente juvenil do rapaz um sonho perturbador o aflija.

Vinco na testa, rosto contraído. Uma gota de suor brota e escorre por sua têmpora, embora a temperatura do quarto estivesse estável nos 19ºC.

Pesadelo. O garoto se debate sob as cobertas. Golpeia o travesseiro com a nuca. Um sonho terrível se desenrola na sua cabeça.

– Miguel!!!!!!!!

O grito apavorado de sua irmã mais nova ao despencar para dentro de um precipício negro e sem fim faz o jovem acordar de súbito.

 – Nããããão!

Miguel senta na cama, leva as mãos ao rosto e esfrega os olhos.

– Que pesadelo, meu Deus!

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Ninguém entra no quarto para consolar o adolescente. Pelo visto, em sua casa, marmanjos de 17 anos de idade não precisam de consolo após uma noite de sono tumultuada.

Atordoado, Miguel sai do quarto tateando as paredes. Acidentalmente, liga todos os interruptores que encontra pelo caminho. Consegue chegar à cozinha depois de esbarrar em alguns móveis. 

 – Ai, meu mindinho! 

 Abre a geladeira, pega uma garrafa de água; depois, um copo. Serve-se e se senta à mesa. Toma um gole e tenta se lembrar de mais detalhes do que tinha acabado de sonhar. 

Tudo o que se recorda é o rosto da sua irmã aflito desaparecendo no breu daquele precipício infinito. Frustrado, cruza os braços na mesa e aninha a cabeça entre eles. Permanece assim por uns segundos, quando…

– Meu filho, quantas vezes eu já lhe falei que seu pai acorda toda vez que vocês acendem as luzes da casa?

A mãe, que adentrava a porta da cozinha já disparando as perguntas retóricas de costume, compadece-se da situação do filho.

– O que foi, querido?

– O de sempre.

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– Aquele sonho com sua irmã…

– O que isso quer dizer, mãe?

Sem ter explicação a dar, a mulher acolhe o rapaz no colo e beija a sua cabeça.

– Boa noite, meu filho. Se precisar de qualquer coisa, bate na porta.

. . .

Taquicardia. Miguel recorda os flashes do pesadelo que acabara de ter. A lembrança do terror estampado no rosto pálido de sua irmã despencando precipício adentro faz o coração do rapaz bater acelerado.

– Dizem que água com açúcar acalma os nervos… Deixa eu pôr essa teoria à prova.

O jovem pega o açucareiro de prata que foi presente de casamento dos seus pais. Coloca duas colheres tímidas do pó doce no copo de vidro. Completa o volume restante com a água que já estava fora da geladeira e dá umas mexidas para dissolver o açúcar.

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Sequência de três goles ruidosos a vibrar as fibras da garganta

– Até agora, nenhuma melhora… Deve levar alguns segundos pra fazer efeito

[…]

– Nada! É pura crendice mesmo.

Miguel pega a colher de chá que usara para misturar o líquido calmante e a coloca dentro do copo. Sua mente começa a divagar por assuntos cotidianos quando subitamente um estrondo impacta no seu peito. Oscilação de luz. Um trovão acabara de interromper a psicosfera romântica da cozinha, convidando o rapaz a contemplar a tempestade da varanda.

-Caramba! Wow!

Pensamentos ionizados pela tempestade.

– Eu adoro trovões! Eles são a prova de que a Natureza te deu mais uma chance…

Retrucando amenidades mentais, o garoto levanta da cadeira da cozinha e caminha em direção à sala, apagando as luzes que sua mãe tinha deixado acesas. Zelando os dedos mindinhos, chega perto da esquadria que separa a sala daquele minúsculo apartamento de sua varanda igualmente exígua.

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– Que coisa difícil de se abrir! Tá emperrada? Ah, agora sim, finalmente!

Impacto frio. Miguel abre a divisória e sente a umidade refrescante das gotinhas de chuva que respingam na sua fronte. De braços abertos e esboçando discreto um sorriso de satisfação com o tempo, continua a devanear…

– Não sei por que tanta gente aqui tem medo de chuva. Lembro de quando as babás que cuidavam de mim e das minhas irmãs diziam pra gente se calçar e cobrir os espelhos dos banheiros. Tudo isso pra não chamar os raios para dentro de casa.

Rajada de vento.

– Houve um tempo que eu também tinha medo. Mas meu pai me fez ver um tempo chuvoso de um jeito muito peculiar.

Corisco e trovão!

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– Toda vez que chove, como agora, volto a ter cinco anos de idade. Era muito bom deitar no colo do meu pai. Ele passava horas comigo na rede a se embalar e a observar a chuva no terraço da nossa casa antiga. Bastava um raio faiscar no céu, acompanhado de um rugido surdo de trovão ao longe pra eu colocar os indicadores nos ouvidos enterrar o rosto no pescoço do papai. Ainda sinto o passar das suas mãos pela minha cabeça para, amorosamente, me convencer a tirar os dedos dos meus ouvidos. O barulho das nuvens se chocando me faz recordar a ladainha costumeira que papai deixava escapar em tempos de chuva: “Ôh, trovão saudoso! Tá vendo, meu filho, não precisa ter medo. Você está na sua casinha e o papai está aqui com você. Era só um trovão lá longe. Já passou.”

O rapaz inspira profundamente e enche o peito de nostalgia. 

Sopro de Yamandu. Miguel olha a paisagem carregada do parapeito de sua varanda. Um feixe de relâmpagos estilhaça o céu nebuloso. O rapaz vê o reflexo das descargas elétricas pintarem de branco a superfície do Poti.

Inesperadamente, um clarão ofusca o garoto. Tontura.

– Caramba, que dor!

Nosso herói passa a mão na nuca, desliza pela mandíbula e esfrega o ombro direito. Figuras de Lichtenberg. 

– Formigamento estranho esse. Vai ver deu um mau jeito quando eu me assustei.

Bocejo profundo.

– É… chega de pegar sereno por hoje. Ganho mais se voltar a dormir.

. . .

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G.S. ATHAYDE

– Escritor –

Autor do Romance Novembro

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5 de abril de 2023

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