Coisas estranhas acontecem no mês de Novembro em Teresina. Treze dias ininterruptos de água. Chove desde o Dia de Todos os Santos. Uma chuva grossa, pesada e contínua, igual a mão corretiva de mãe a sovar o couro rubro de uma filha malcriada. Teresina chora.
As lágrimas se amontoam. Teresina se alaga e sangra através de suas ruas e calçadas. A correnteza desliza para o lado mais baixo da cidade. As lágrimas matam a sede do Poti, à míngua desde o começo da primavera meio-nortista. E os raios… Serpenteiam em todas as direções esses bois-tatá alados. Deixam em brasa o céu da Chapada do Corisco. Uns, mais afoitos, mergulham de cabeça em direção a terra. Estrondo. Faísca na cruz mais alta da São Benedito. Explosão. Os estaios da Isidoro França se eletrificam. Estampido surdo ao longe. Lá se foi o Troca-Troca. É assim a noite inteira. Teresina, atormentada, amanhece sem dormir.
Calmaria assim que o sol começa a pulsar às vinte pras seis da manhã. A cidade desperta como o herói que se levanta após uma noite de batalha. Pouco a pouco as pessoas saem de suas casas. A vida recobra seu fluxo normal. Calmaria. As moças de colares e laços de fita acenam para seus rapazes na passarela da Frei Serafim. Calmaria. Os atletas amadores começam a encher a Cajuína no sentido Raul Lopes para o cooper matinal, saltando as poças de água e lama periódicas durante o caminho. As famílias terminam de tomar café para levar os pequenos à escola. Quem tem trabalho, vai pro trabalho. Quem tem o que fazer, faz o que tem que ser feito. Segue a vida umidamente. O décimo quarto dia de Novembro é invadido pela bonança.

O Poti está gordo como a sucuri que acaba de engolir um novilho: marrom-esverdeado, caudaloso e sinuosamente pleno. Teresina está encharcada e fresca como uma virgem envolvida por lençóis brancos translúcidos de água. Particular atmosfera de magia toma conta da paisagem. Cheiro de umidade verde. Encantadora visão.
A parte clara do dia passa sem muitas novidades.
Noite. A lua mostra a ponta da unha entre chumaços de nuvens. Cartão postal. Um casal de namorados faz pose na ponte JK de costas pra Raul Lopes, querendo enquadrar a ponte nova na foto.

Ele dá um beijo nela. Ela sorri com o canto da boca, olha pro chão e coloca uma mecha de cabelo atrás da orelha esquerda. Subitamente uma rajada de vento passa por entre os dois, despenteando a moça. Ele dá dois passos para trás e aponta a lente para ela.
– Amor, ajeita o cabelo… O vento assanhou.
– Tira logo essa foto, amor, antes que comece a chover.
– Tá… espera só um pouquinho.
O jovem volta o olhar pra câmera fotográfica. Susto. Um raio dilacera o ar.
– Calma! o flash não tá ligado… Pronto! Vai, amor… Sorri…

A moça desaparece do nada. Rapto? Precipitou-se no rio? Não houve som, gemido, pancada. O jovem inconformado se joga por sobre o parapeito. Grita. Urra. Espuma… Nada adianta. Uma mancha de água e lodo marca o local do desaparecimento da moça. Algo parecido com uma pegada ou com um formato de mão borrado. O rapaz permanece ajoelhado sobre a mancha, mas não percebe. Outro raio trinca o céu neste instante, mas não choveu.
. . .
Alheio a desventura que acabara de acontecer ao jovem casal de namorados, um bêbado perambula errante pelo passeio da Frei Serafim. Muito animado, ele cantarola a boemia melódica dos versos de uma banda famosa na cidade.
– Tome este vale e vá pra Timon, só dê notícias lá do outro lado – diz ele a dedicar o verso para a garrafa de pinga quase vazia que leva consigo. Ela, sua única e fiel companheira, nada responde.
Entre um gole e outro, o ébrio contorna o largo da Igreja São Benedito. Passa as mãos encardidas pela tinta branca das paredes da magnífica construção. Vandalismo acidental. O andarilho desce com notável desenvoltura a escadaria da frente do templo ao ritmo das estrofes da canção que entoava. Ele não tropeça nem bambeia. É… há quem diga que Deus protege os bêbados. Sereno e garoa. Uma gota atrevida cai dentro do olho do abençoado cantor.
– Quem foi que cuspiu em mim?
Eis que se arma o toró. Toró mafrense clássico. Pingos grossos, ventos, uivos, galhos estalando, árvores chacoalhando e coriscos. Blackout total. O homem corre em direção à praça Pedro II e se acomoda embaixo da marquise do Cine Rex.
– Eita, chuva mais sem motivo! Resmunga.
Um vento frio, daqueles de trincar a espinha, passeia sorrateiramente pelo perímetro da P2*. Bater de queixos. O nosso desconhecido íntimo cruza os braços sob as axilas. Ainda segurando com uma das mãos a garrafa de pinga, contempla o ambiente ao seu redor encharcar.

Do outro lado da praça, um morador de rua manco se arrasta para debaixo do toldo de uma loja “bate-cópia”. Traz consigo uma muleta de madeira, um maço de jornal velho e um cachorro vira-lata malhado e imundo, preso à uma coleira feita de corda de piaçava levemente poída. O trio de indigentes se observa e se ignora, dois a um. O cão abre a boca e dá um bocejo profundo. O manco se cobre com o jornal velho e traz o cão para junto de si. O bêbado encara a dupla do outro lado da rua e, depois de uma golada, maldiz: idiotas.
A tempestade chega ao seu clímax. A árvore malcheirosa próxima ao coreto em estilo neoclássico da praça verga e ameaça quebrar. Quem passa perto dela num dia comum e seco na capital sente um odor forte e corrosivo de ovo podre misturado com enxofre. A chuva começa a diminuir. Chuva sulfúrica. Um raio cáustico parte o céu e abre a árvore em duas bandas. Árvore-tocha. Enquanto as labaredas consomem a planta, o manco tenta consolar o seu cão que se debate e emite latidos agudos, parecidos com silvos de apitos. Dizem que os cães pressentem as coisas.
Subitamente, o chão começa a tremer. As pedras-portuguesas que forram as passarelas da praça se desencaixam. Entreolhares. Desespero e pedidos de socorro mútuos em telepatia.
A fenda central da árvore em chamas começa a estalar e expandir. Do seu interior emergem cinco objetos pontiagudos e articulados. Tentáculos? Logo em seguida mais cinco. Dedos? A chuva, a fumaça e as cinzas borram os detalhes da cena.
Uma rajada de vento inadvertida varre a névoa que impedia a visão dos acontecimentos. Já é possível definir o que sai de dentro da árvore. Duas mãos, que forçam as duas metades da planta em direções opostas. Um… dois… Três solavancos. A árvore é dilacerada pela criatura que brota de dentro da terra. Parto. Uma mulher esguia, de cabelos pretos e longos ergue-se da fenda infernal. Ela usa um vestido branco, que cobre o corpo inteiro. Manchas pretas marcam a barra da saia e o final das mangas. O pretume vem do enxofre que escorre das extremidades de seus membros. Diabólica. O cheiro de matéria podre fica ainda mais denso. O monstro se contorce para frente e para trás e emite gritos finos e penetrantes. Volta a cabeça para o alto, abre a boca e passa a língua triangular e áspera pelos lábios crespos.
Fome. Como o novilho recém-nascido que, após romper as entranhas maternas, vaga à procura de algo para saciar seu apetite, a criatura vasculha os arredores da praça . Fome de quê? Carne. O cão sarnento começa a ladrar enquanto o aleijão tenta domá-lo ao enrolar a corda pelos pulsos. A agitação faz o monstro andar para junto da dupla. A corda poída se rompe e o cachorro parte para cima da gigante. Sem se intimidar com os latidos, a assombração investe contra o mendigo e segura-o pela gola da camiseta velha. Marionete. O monstro joga o pobre homem de um lado para o outro, revista-o como a procurar por algo entre suas roupas. À medida em que se debate, o indigente atiça a besta. Impaciente e contrariada, a aberração muda de cor. O verde acinzentado de sua pele dá lugar a um laranja incandescente.
O pobre homem geme de dor ao ser agarrado pela fera. Ele olha para os próprios braços e vê as marcas de queimadura deixadas pelas mãos da titânide, que parece estar em ponto de fusão.
Presságio de morte. Enfurecida por não achar o que procurava, a gigante demoníaca golpeia a sua vítima com a mão direita espalmada. O homem é pulverizado instantaneamente. Os restos mortais do indigente pairam no ar.
A predadora, então, contrai os beiços enrugados e suga a poeira na qual havia transformado o infeliz homem, como se tentasse apagar qualquer vestígio do assassinato que acabara de cometer. Frenesi. A aberração bota uma jarda de língua para fora da boca e, desesperadamente, lambe o rosto inteiro, enquanto esfrega o dorso das mãos nos olhos e nas bochechas. A besta parece satisfeita… Parcialmente, satisfeita…
. . .

Espanto, pavor e dormência. O bêbado deixa a garrafa de pinga escorregar por entre os dedos. O barulho do vidro ao bater na calçada chama a atenção do monstro para a direção da marquise do antigo Cine Rex, debaixo da qual se escondia a muda e atônita testemunha do crime.
Em cinco passadas, o demônio alcança o ébrio desafortunado. Ao chegar bem perto dele, solta um urro ensurdecedor. Impressionado com a magnitude do monstro, nosso bêbado, quase finado, retira lentamente uma carteira de cigarro do bolso da camisa amarela de botão. Desembrulha cuidadosamente o papel amaçado e pinça o fumo lá de dentro. Tateia com uma das mãos a cintura a procurar um isqueiro velho e enferrujado. Achei! Encara a titânide bestial a espalmar novamente a mão flamejante.
É agora! Acende o cigarro, dá um trago, cerra os olhos, mas não solta a fumaça. Sente uma rajada de vento passar pelo seu rosto ainda contraído. Furto. A besta rouba o cigarro da boca do nosso cambaleante herói e se distancia dele. Franze os lábios, leva o cigarro à sua boca e, numa única aspirada, consome todo o conteúdo do fumo. A fera se contorce a se regozijar. O bêbado dá um suspiro de alívio. Supõe que a predadora já estivesse satisfeita. Ingênua conclusão.
Desejosa por mais cigarro, a monstruosa criatura investe contra o desafortunado indigente. Enquanto tem seu corpo revistado, deixa cair a carteira de cigarro. O barulho desvia a atenção do demônio que pinça com dois dedo finos e compridos a caixa de tabaco. Leva o pacote até as narinas e o cheira profundamente. Volta o olhar para o pobre homem, segurado pelo colarinho. Encara-o docemente, inclina a cabeça para um lado e o outro.
O lapso de compaixão dura apenas um átimo. Rapidamente, franze a cara num sorriso diabólico e arremessa o pobre decrépito contra a parede encardida do Cine Rex. O homem cai ao chão já desacordado.
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G.S. ATHAYDE
– Escritor –
Autor do Romance Novembro
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