CAPÍTULO 4 – Duas Marias

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A chuva do caju havia se transformado em chuva de monção. Nuvens fornidas alvoroçaram o céu como uma manada de elefantes. Ora esgarçadas como algodão fino, pulverizavam o ar da capital meio-nortista. Ora robustas, assolavam a cidade com dilúvios de proporções bíblicas.

Em um dos poucos momentos de arrefecimento na precipitação, duas jovens no esplendor dos seus vinte anos conversam fervorosamente às margens do Poti.

– Amiga, cuidado! Não chega muito perto da margem. Com tanta chuva que deu esses dias, o rio está imprevisível.

– Não se preocupe, amiga. Comprei essa galocha aqui. Ela tem um solado antiderrapante… alta tecnologia. Mais fácil você despencar ribanceira abaixo com essa bota velha. Retrucou a moça morena à moça clara com ar de ironia fraternal.

A garota cor de jambo maduro desliza para dentro do Poti. A água se atiça de maneira estranha, mas ela não percebe. Seus calçados realmente a impedem de escorregar enquanto avança para longe da beira do rio. Coleta uma amostra de água. Analisa a olho nu e deposita o conteúdo cuidadosamente em um frasquinho repleto de uma solução-teste. Faz esse procedimento algumas vezes.

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Ainda a se esgueirar pela franja da água, tomando todo o cuidado para não se esborrachar em um canto pedregoso, a moça clara tira uma picareta de sua mochila cheia de equipamentos. Martela cirurgicamente um bloco rochoso e, com a ajuda de uma pá e uma pequena vassoura, recolhe o material em um balde. Descarta uns pedaços insignificantes e separa em um recipiente de plástico as amostras para estudo futuro.

– Será que é hoje que vamos encontrar vestígios de árvores fossilizadas aqui, depois da Curva São Paulo? Indagou a moça alva.

– Amiga, se você comprovar essa teoria, vai poder entrar com um processo na prefeitura para ampliar a área do Parque Floresta Fóssil. Isso vai ser, além de um ganho científico pra Teresina, um bem para o nosso patrimônio natural.

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– Deus te ouça, amiga. Deus te ouça!

– Fora que eu vou ter uma amiga famosa, né? Sua rede social vai bombar e vamos ganhar cortesia em festas e vários presentinhos de marcas famosas!

– Você não existe, miga! Quem é que vai dar cortesia e presentes pra duas cientistas anônimas do Piauí? Acorda pra realidade! Retrucou a moça nívea às gargalhadas, a essa altura com a maçã do rosto já avermelhada por conta do sol.

A jovem sorridente ignorava a desventura que lhe faria ganhar os holofotes da mídia.

– Lá vem você com o seu pessimismo, Maria Carla. Interrompe a garota cor de canela.

– Melhor que ficar se iludindo com sonhos que nunca vão acontecer, dona Bruna Maria! Vamos logo, se concentra pra gente acabar logo e não evitar ter que fazer tudo de novo, caso algum dado fique errado. Recomenda a cautelosa moça cor de açúcar.

– Ah, amiga! A vida é mais do que estudo e trabalho.

Pausa repentina nas atividades. Falatório sem propósito. Sequência de amenidades.

– Eu sei que sua rotina é super corrida e que você tem preocupações que eu pretendo ter só quando eu tiver cruzado a barreira dos 30 anos! Mas sei lá… tem vários lugares que você pode ir, ver gente nova, movimento.

– É que eu estou numa fase complicada. Muita coisa pra administrar se eu quiser dar uma saidinha de vez em quando. O Nando não me dá folga. 

– Pelo menos você tem que administrar só um homem. Já eu… Você se lembra do Bruno? Que a gente chamava de Bruninho na escola, um moreninho de cabelo liso?

– Como esquecer, ele tinha até fã clube naquela época. 

– Então, me viu na academia e não me reconheceu. Mas eu vi pelo espelho que ele estava só me secando. Aí ele chegou e, papo vai papo vem, trocamos telefone. Marcamos de nos ver na sexta.

– Rápidos vocês dois.

– O problema é que eu já tinha marcado de sair com o Fê no sábado. Estou com medo de dar choque. Marcar com dois caras assim um dia depois do outro pode dar treta. O que eu faço amiga. 

– A minha opinião você já sabe qual é. Depois você fica com fama…

– Só vou ter fama se eles descobrirem e eu sou esperta. Jogo meu charminho e tenho os dois na palma da minha mão. Eles não vão nem desconfiar.

– Pois reza pra que isso aconteça mesmo. Você sabe do ditado: Teresina só tem 3 pessoas, eu, você e alguém com quem a gente já ficou.

– É, mas eu sou “carne nova no pedaço”. Quando eu era novinha e fora do peso ninguém sabia que eu existia. Agora que o jogo virou, quem manda sou eu. Tenho mais é que aproveitar o meu momento, descontar o atraso e beijar quem eu sempre quis mas sempre me ignorou.

– Tudo bem! Mas vai com calma e te preserva. O mundo não vai acabar amanhã não.

– Pode deixar, Madre Maria Carla de Calcutá. Pudica assim, você deveria ter virado feira mesmo.

– Só porque eu tenho meus princípios não que dizer que… Você viu aquilo?!

– Aquilo o quê?

– Ali atrás de você! A água parece borbulhar.

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Bruna Maria olha na direção para a qual a amiga apontou. Cara de desdém. 

– Não é nada amiga, deve ser espuma causada por algum produto indevido despejado no rio. Pode deixar que eu cuido disso, é minha profissão. 

– Pensei ter visto um vulto escuro sob a água. Vem aqui mais pra perto da margem. Estou preocupada.

– Deve ter sido algum cardume de mandis ou de curimatás. Sem estresse.

– Sai da água, amiga! Estou com um mau pressentimento. Suplicou Maria Carla ao levar a mão ao peito, apertando o escapulário.

– Amiga, relaxa! Já disse que não tem problema alg…

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Desatenção provocada por excesso de autoconfiança. Explosão em forma de geiser.

– Socorro, amiga! Tem alguma coisa puxando a minha perna!

Não houve tempo para reação.

Maria Carla é jogada para dentro da mata ciliar. Seus óculos de grau, mochila e equipamentos de pesquisa são arremessados cada um em uma direção. Miopia e confusão mental momentânea. As águas do Poti se revoltam como quando um jacaré ataca uma rês distraída.

Enquanto recupera a lucidez, a moça clara percebe o vulto da amiga sendo tragado para dentro do rio. Grito de desespero evanescente. O volume de água que jorrou para cima cai suavemente em forma de gotículas cristalinas.

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Maria Carla apalpa o rosto, o abdômen e as coxas. Fisicamente, tudo em ordem.

Instintivamente, a jovem, com as mãos ainda trêmulas, tateia os bolsos da sua calça. Celular. Sinal fraco mais salto de fé.

Antes de fazer uma ligação para pedir socorro, Maria Carla olha com ternura a imagem de proteção de tela. Na sua mente, um único pensamento: voltar para casa, beijar o marido e abraçar seu filho.

Por sorte, a nossa sobrevivente havia ligado pro cônjuge momentos antes de sair para coleta de material de estudo. Último registro de chamada. Ligar. 

– Amor, você não vai acreditar na tragédia que eu acabei de ver! Diz nossa felizarda com voz embargada. 

– Aconteceu alguma coisa grave? Onde você está? Grita Nando, o marido, do outro lado da linha. 

– Estou no campo de pesquisa, vem aqui me buscar, por favor. 

– Calma, amor! Vou deixar o Juninho na casa da vizinha e sigo já pra te encontrar.

. . .

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G.S. ATHAYDE

– Escritor –

Autor do Romance Novembro

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